sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A Liturgia e a Pureza


 Por Luís Augusto Rodrigues Domingues

  INTRODUÇÃO

O conceito de pureza, na teologia católica, está muito ligado a  três frutos do Espírito Santo, segundo São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 5,22-23, de acordo com a edição antiga da Vulgata): modestia, continentia e castitas,  que  na  versão  grega  se  resumem  na  palavra   (egkrateia  –  autodomínio,  autocontrole, temperança) ou na latina continentia (de acordo com a edição nova da Vulgata). Frutos do Espírito são “perfeições que o Espírito Santo forma em nós” (Catecismo da Igreja Católica, 1832), atos virtuosos acompanhados de certa alegria ou suavidade espiritual, diferente de atos de virtude imperfeitos e penosos (cf. Compendio di Teologia Ascetica e Mistica, 1359-1360). Não sendo minha intenção tratar de aspectos muito teológicos, gostaria apenas de apresentar a importância que na Sagrada Liturgia se dá à pureza a fim de manifestar sua urgência na vida cristã e, sobretudo, na vida dos fiéis encarregados de ministérios ligados à Liturgia.

PUREZA NA SAGRADA ESCRITURA

Aparece no Antigo Testamento a  (bor – pureza), por exemplo, num Salmo de Davi, também presente no II Livro de Samuel:  “O Senhor me tratou segundo a minha inocência, retribuiu-me segundo a pureza de minhas mãos (puritatem manuum mearum), porque guardei os caminhos do Senhor e não pequei separando-me do meu Deus. Tenho diante dos olhos todos os seus preceitos e não me desvio de suas leis. Ando irrepreensivelmente diante dele, guardando-me do meu pecado. O Senhor retribuiu-me segundo a minha justiça, segundo a pureza de minhas mãos diante dos seus olhos. Com quem é bondoso vos mostrais bondoso, com o homem íntegro vos mostrais íntegro; puro com quem é puro; prudente com quem é astuto” (Sl 17/18,21-27). Este trecho é rezado na Salmodia do Ofício das Leituras da quarta-feira da I Semana do Saltério (na Forma Ordinária do Ofício Divino). Seu significado pode ser muito extenso, mas algo dele se descobre por exclusão daquilo que se revela como  (tum’ah - impureza): no contexto da sexualidade e no contexto religioso, da doutrina e das práticas. No Evangelho segundo São Mateus há uma bela promessa de nosso Senhor, à qual retornaremos mais abaixo: “Bem-aventurados os puros de coração (καθαροι τη καρδια/mundo corde), porque verão Deus!” (Mt 5,8) Para não ser exaustivo, passo diretamente para a impureza (immunditia) citada nas exortações de São Paulo, que muitas vezes é a tradução de duas palavras:  (akatharsia) e  (porneia). Akatharsia  significa  mais  literalmente  a  impureza  do  contexto  ritual.  Porneia  já  vem  do  verbo  vender,  e refere-se mais diretamente à prostituição e aos pecados do âmbito sexual (ex: fornicação, entendida como a relação sexual de pessoas não casadas). Com mais um terceiro termo, (aselgeia – libertinagem, luxúria, licenciosidade), formam as três das primeiras obras da carne (fornicatio, immunditia, luxuria, ou seja, fornicação, impureza e libertinagem), contrárias aos frutos do Espírito. Sendo  assim,  quero  referir-me  principalmente  à  pureza  como  o  antônimo  destas  últimas  coisas  e  como sinônimo daquelas primeiras.

PUREZA NAS ORAÇÕES DO MISSAL ROMANO


Não tendo feito uma pesquisa exaustiva do pedido de pureza nas orações do Missal, seja na Forma Ordinária ou  Extraordinária  do  Rito  Romano,  passemos  para  algumas  orações  mais  conhecidas  e  que  tratam  mais diretamente disto. O  primeiro  lugar  é  a  Præparatio  ad  Missam,  que  inclui  as  Orationes  dicendæ  cum  sacerdos  induitur sacerdotalibus paramentis. Naquela preparação (Forma Extraordinária) temos duas das sete orações, após os cinco salmos, que dizem: Deus,  cui  omne  cor  patet  et  omnis  volúntas  lóquitur,  et  quem  nullum  latet  secrétum:  purífica  per infusiónem Sancti Spíritus cogitatiónes cordis nostri; ut te perfécte dilígere et digne laudáre mereámur. (Ó Deus, que vedes nos refolhos do nosso coração e a quem não escapa o mais secreto movimento da nossa vontade, purificai os pensamentos da nossa alma com a efusão do Espírito Santo, a fim de que vos mereçamos amar perfeitamente e dignamente louvar.


“Ure igne Sancti Spíritus renes nostros et cor nostrum, Dómine: ut tibi casto córpore serviámus, et mundo corde placeámus”. (Queimai, Senhor, com o fogo do Espírito Santo o nosso coração e os nossos rins, e fazei que vos sirvamos castamente e vos agrademos pela pureza do nosso coração.)
 Percebe-se que a Deus se pede não somente a pureza do corpo, mas a pureza do coração, de que a primeira depende  e  é  consequência,  como  disse  o  Senhor:  “Porque  é  do  coração  (de  corde)  que  provêm  os  maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias” (Mt 15,19).
 Das orações para quando o sacerdote se paramenta, a que acompanha o cíngulo (o cordão que se amarra em volta da cintura para ajustar a alva e prender a estola) realça aqueles frutos do Espírito:
"Præcínge me, Dómine, cíngulo puritátis, et exstíngue in lumbis meis humórem libídinis; ut máneat in me virtus continéntiæ et castitátis”. (Cingi-me, Senhor, com o cíngulo da pureza e extingui em meus rins o fogo da paixão, para que resida em mim a virtude da continência e da castidade.)

Logo depois, no Ordo Missæ (Forma Extraordinária), poder-se-ia citar a oração do sacerdote ao subir ao altar: “Aufer  a  nobis,  quǽsumus,  Dómine,  iniquitátes  nostras:  ut  ad  Sancta  Sanctórum  puris  mereámur méntibus introíre”. (Afastai de nós, Senhor, vos pedimos, as nossas iniquidades, a fim de merecermos entrar de alma pura no Santo dos Santos.) Também a oração do sacerdote antes de proclamar o Evangelho: “Munda cor meum ac lábia mea, omnípotens Deus, qui lábia Isaíæ prophétæ cálculo mundásti igníto: ita me tua grata miseratióne dignáre mundáre, ut sanctum Evangélium tuum digne váleam nuntiáre”. (Purificai-me, Deus onipotente, o coração e os lábios, vós que purificastes os lábios do profeta Isaías com um carvão em brasa; pela vossa misericordiosa bondade. Dignai-vos purificar-me, de modo a tornar-me capaz de proclamar dignamente o vosso santo Evangelho.) A pureza, de um modo geral, é pedida igualmente após a Comunhão, enquanto se faz a ablução dos vasos sagrados: “Quod  ore  súmpsimus,  Dómine,  pura  mente  capiámus:  et  de  múnere  temporáli  fiat  nobis  remédium sempitérnum”. “Corpus tuum, Dómine, quod sumpsi, et Sanguis, quem potávi, adhǽreat viscéribus meis: et præsta; ut in me non remáneat scélerum mácula, quem pura et sancta refecerunt sacramenta”. (Com pureza de alma recebamos, Senhor, o que em nossa boca tomamos. Este dom, que nos foi concedido no tempo, remédio nos seja para a eternidade. O vosso Corpo, Senhor, que eu comi e o vosso Sangue que eu bebi se unam às minhas entranhas; refeito que fui com estes puros e santos sacramentos, fazei que em mim não fique mancha alguma de pecado.)

A Gratiarum actio post Missam(Ação de graças após a missa)  também nos  apresenta tal pedido em algumas orações  (a primeira de  São Tomás de Aquino, a segunda do Papa Clemente XI e a terceira a São José): “[Hæc sancta Commúnio] sit vitiórum meórum evacuátio, concupiscéntiæ et libídinis exterminátio”. ([Esta santa Comunhão] extinga na minha alma os vícios, o ardor da concupiscência e o desejo das coisas que degradam.) “[Fac,  Dómine,]  curem  habére  innocéntiam  interiórem,  modéstiam  exteriórem,  conversatiónem exemplárem, vitam regularem”. ([Fazei,  Senhor,]  que  eu  procure  possuir  pureza  de  coração  e  modéstia  de  costumes,  um  procedimento exemplar e uma vida reta.) “Te per hoc utrúmque caríssimum pignus Iesum et Maríam óbsecro et obtéstor, ut me, ab omni immundítia præservátum, mente incontamináta, puro corde et casto córpore Iesu et Maríæ semper fácias castíssime famulári”. (Em nome de Jesus e de Maria, desse duplo tesouro que vos foi tão caro, vos suplico que me conserveis isento de toda a impureza, para que, com espírito puro e corpo casto, sempre sirva fielmente a Jesus e a Maria.)

A PROMESSA DE DEUS AOS PUROS DE CORAÇÃO

Conforme dito bem mais acima, retornemos à promessa do Senhor: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!” (Mt 5,8)Esta promessa vem de encontro ao desejo do salmista: “Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus?” (Sl 41/42,3), desejo este também nosso, sobretudo na Vigília Pascal (Forma Ordinária) e nas Laudes da segunda-feira da II Semana do Saltério, quando rezamos este Salmo. Sendo uma das bem-aventuranças, a pureza de coração consiste em atos, que parecem proceder mais dos dons do Espírito do que das virtudes, e é um meio eficacíssimo para se alcançar a bem-aventurança eterna, porque faz parte da perfeita imitação de Cristo, e porque por ela se dão grandes passos no caminho da perfeição (cf. Compendio di Teologia Ascetica e Mistica, 1361).

 CONCLUSÃO

A pureza de coração, os frutos do Espírito relacionados à pureza (modéstia, continência e castidade, resumidos na continentia ou egkrateia) são necessários para quem procura fazer “a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (Rm 12,2). Se os sinais sensíveis da Liturgia significam e realizam a santificação do homem e nela a Igreja presta culto a Deus, a pureza pedida (e também exigida) certamente fica mais próxima de ser alcançada através desta grande obra de Cristo, na qual ele sempre associa a si a Igreja, sua esposa muito amada. Consideremos, portanto, que a participação na Liturgia é indispensável para que se consiga a pureza na vida cristã, para podermos ver a face de Deus, pois sabemos que “Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos sacramentos e no seu sacrifício e, por meio deles, purifica continuamente e consagra a Deus o gênero humano” (Encíclica Mediator Dei, 26). Por outro lado, o da exigência, aos que já exercem ministérios na Liturgia da Igreja, sejam bispos, presbíteros ou diáconos, acólitos ou leitores, pessoas instituídas nas ordens menores, cerimoniários, coroinhas, cantores, instrumentistas, leitores, sacristãos, ministros extraordinários da comunhão eucarística, comentaristas, etc., a pureza se torna uma meta especial a ser alcançada, uma marca pela qual se deve distinguir nossa vida. Pouco  a  pouco  nos  tornaremos  mais  semelhantes a  nosso  Senhor,  que  sobre  o  altar  é  oferecido,  o  qual  o sacerdote, no Cânon Romano, declara ser “a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada”. Tudo isto faz-me lembrar de uma frase do Servo de Deus Pe. João Baptista Reus, SJ, que, embora se relacione à santidade de um modo geral, aplico aqui reclamando uma ênfase implícita à pureza na vida de todos os que exercem ministérios na Sagrada Liturgia:  
“Quão santa não há de ser minha vida só por causa da Santa Missa...”

Fonte: GloriaTv

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